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Aquele que não tem voz


Em a Hora da Estrela, a autora, Clarice Lispector traz ao seu leitor a percepção de um mundo interior que comanda um mundo exterior. A obra converte letras em drama e as imagens do inconsciente em texto, e vice-versa penetrando no leitor e convidando-o até uma nova fase na vida. A história provoca tantas emoções que é quase uma catarse analisá-la.

Com um narrador personagem, a obra gira em torno da história de Macabea,uma jovem nordestina miserável, entre outros personagens que “secundam”. A menina vive, melhor, pena sem esperança. Ela não tem consciência, não percebe e nem sente a vida.

Clarisse usa a cruel realidade do nordestino de: escassez, seca, pobreza, desrespeito e exploração, só limitações, para levar o leitor a uma profunda análise do verdadeiro eu, simultaneamente aguça-o a pensar sobre a sociedade que o cerca, e hipnotiza-o a uma auto-análise.

Para Macabea tudo é pouco, tão pouco que ela não tem noção do que é muito e aceita o nada. Na multidão nem é mais uma. Não é notada nem compreendida. Não tem pensamento, logo lhe falta o existir.

A falta de informação leva a jovem a um estado vegetativo, e não evolui. Ela aceita qualquer idéia, não há conflito, não há reflexões. Apenas imagens e sensações ignoradas até por ela mesma. Macabea dorme e acorda sem abrir os olhos.

As únicas fontes de informação foram os superficiais contos bíblicos distorcidos e o engodo midiático. A linguagem lhe falta como a vida, como o êxtase, como o gozo. O exercício da comunicação lhe foi castrado.

Não há um exercício de reflexão:questionamento, perguntas, pesquisa, resposta, conclusão e ação. Não há um diálogo com a vida. A moça é deficiente para compreender ao passo que também não é compreendida. Está a margem.

Tudo é previsível, triste e escuro na vida da rapariga, até que ela percebe Glória e Glória a percebe, é aberta uma porta, é acesa uma luz. Macabea se permite o novo e vai a uma cartomante.

A cartomante a desvenda. As palavras novas e reais acendem uma esperança na nordestina que passa a ver, digo, viver. Ela enxerga que tem valor, que não merece ser medíocre e miserável, a jovem renasce. Sente a vida, raciocina, sonha e existe. Então Macabea morre, morre a menina morta porque se está viva não é Macabea.

A protagonista é o símbolo do obscuro que aprisiona; da resposta que não chega e mantém o caminho fechado, e ao iluminar-se deixa de ser escuro. A morte da personagem indica uma passagem, a morte pode ser o fim de um período no tempo psicológico, um renascimento.

A história lembra que a vida passa, tem um movimento, e deve ser aproveitado. As épocas passam, os acontecimentos, as pessoas, a natureza, tudo muda, e deve mudar. È importante viver a vida, curti-la, experimentá-la, pensa-la, saber. Não podemos nos esquecer. Há de existir. Ter a mente aberta para o novo, olhar para fora desprendido de preconceitos, pois em um só relance, em um insight, pode-se entender a origem do completo drama de uma vida, e liberta-se dele.

A vida tem um fim, é preciso saber tirar o melhor dela, “saborear cada fruta na hora certa de cada estação”. Perceber-se, amar-se, harmonizar-se com a sociedade. Ter um pensamento, uma ideologia, um estilo, buscar um motivo para ser e transformar sua realidade, torná-la a seu favor. Deixar nascer sua estrela, sua luz, seu movimento, sua vida, aproveitar esse tempo. “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos”.

Pode-se andar pelas ruas e avistar muitas Macabeas. Pessoas que não se questionam, na verdade não se ouvem, não sabem o som do próprio pensamento, por isso não tem voz. Estão a toda parte, em todas as classes, em todos os lugares.

O cineasta Cláudio Assis, assim como a autora Clarisse, usa no filme “Baxio das Bestas” a realidade de escassez do nordestino para trazer ao público uma reflexão. O longa conta a história de uma menina,“filha do avô”, explorada sexualmente pelo familiar. A moça e todos os outros personagens vivem a obedecer ordens, sendo extremamente infelizes, sem se revoltar contra, sem questionar.

Em entrevista ao programa Arte com Sérgio Britto em 2007, ano de lançamento do filme, Assis conta, “Não tem horizontes nas cenas, a câmera sempre fecha em espaços curtos, não há uma visão do infinito, assim como são as visões dos personagens.”

Em a Hora da Estrela, os personagens também não tem uma visão ampla da vida, em consequência do não encontro com o verdadeiro eu. Nas duas obras os personagens não se percebem, não escutam a voz interior que acusa um descontentamento.

Ainda na entrevista, o diretor relata que apesar de falar do sofrimento do povo, o filme foi feito para confrontar a elite, “O meu compromisso é com o povo, as cenas são agressivas porque eu quero que a elite veja o que ela faz, mas fecha os olhos”.

No livro Preconceito Linguistico de Marcos Bagno, o autor afirma que as pesquisas revelam que em qualquer região do país os falantes da língua portuguesa nas classes mais altas, nas elites, dominam melhor o idioma do que os as outras classes.

No Brasil, é nítida uma desigualdade social, que reflete uma desigualdade cultural. Há os ricos admirados e os pobres rejeitados. Mas, aqueles que não tem voz independe de todas essas diferenças. São os que seguem um padrão, um modismo, uma ordem sem porquê nem motivo. Não se indagam, não se perturbam, não “choram o próprio choro” e nem “riem o próprio riso”. Não tem uma identidade, uma ideologia consciente.

Estão sempre a espera que alguém os salve, diga que caminho seguir, traga o dinheiro, a casa própria, enfim um herói que traga a felicidade. Mas, tanto no filme de Cláudio Assis quanto nas obras de Clarisse e Bagno, há uma exortação para que se tome uma atitude. Vê-se que cada um é, e deve ser o herói da própria vida.


Mas ao longo de toda sua história, o homem cria uma desculpa para não querer ver. Platão descreve o mito da caverna do homem que prefere as sombras, Jocasta mãe de Édipo fura seus próprios olhos quando percebe que o filho estar prestes a descobrir a verdade velada. O contemporâneo autor José Saramago escreve Ensaio sobre a Cegueira, no qual as personagens não tem nome, e a única que pode ver na maior parte do tempo não toma uma atitude mesmo tendo visão.



É preciso ver, é preciso se ouvir, se perceber, questionar a vida o ser, as pessoas, os fatos e suas consequências. Tomar uma atitude e mudar a realidade. Viver os sonhos antes que não haja mais tempo para isso. Não importa se nascido em berço de ouro ou de palha, o importante é que não se aceite a exclusão. Não há vítima ou culpado, há aquele que escolhe não pensar, não existir, não ver, não se ouvir, e não ter voz.



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